domingo, 13 de agosto de 2017

Nostalgia via imagem




Tudo são garrafas jogadas ao mar. Tentativas possivelmente inúteis de comunicação ao nada.Na tarde em que tirei esta foto, meu pai já tinha morrido; eu ainda não sabia. Estava indo pra escola dar as aulas da noite, e meu ex-marido foi me buscar. Ao invés de irmos para casa, ele me levou para a casa do nosso filho caçula. Esta mudança de planos toda já me deu a certeza de que meu pai tinha morrido, e que eles estavam buscando uma maneira mais suave de me dar a notícia. 
Quando eu cheguei lá eu já sabia. Meus dois filhos estavam lá. Me fizeram sentar, e contaram, ou eu falei, não lembro mais.Tudo o que pensei foi "E agora, a quem vou ligar pra peguntar se estiver com alguma coisa?" Porque ele sempre gostou de dar conselhos, e eu, mesmo sabendo o que fazer perguntava, só pra deixar ele feliz. Dor de garganta, gargarejar com água quente e sal. Dor de cabeça, com certeza é fígado, você tem isto desde criança.Tudo bem que fazia uns seis meses que você, pai, não tinha mais forças pra me aconselhar. Mas eu ainda queria você vivendo bem mais que os seus 89 anos. Egoísmo, ou amor.
Uma semana depois que você morreu sonhei contigo. Estava em pé! Depois de seis meses de cama sem levantar pra nada. Não falou nada... Só olhou para mim com um olhar bem lindo. Quatro anos se passaram.Muitas saudades.O mundo ficou bem vazio sem você, velhinho ranzinza.

quinta-feira, 10 de agosto de 2017

Epifania de figura

Foto de tatiartes em 9/08/2017


A figuração não é nem busca, é um encontro, estás passando e záz...
Quando eu era criança sempre enxergava um índio com cocar, de perfil, em um dos azulejos do banheiros de casa, bem à direita de um espelho. Na verdade era um defeito na estampa, mas eu buscava, no meio de todos, e sempre encontrava o índio com o cocar, e aquilo de alguma maneira era um encontro feliz para mim.
Adulta, voltei à casa do meu pai depois de um tempo fora. O banheiro continuava com os mesmos azulejos. No entanto, por mais que eu tivesse procurado, e de fato procurei, não estava mais lá o índio com seu cocar.Daí me percebi realmente adulta, e senti falta do tempo em que me permitia enxergar índios com cocares em azulejos de banheiros.


quarta-feira, 2 de agosto de 2017

Canção da Infância - Peter Handke

Quando a criança era criança,
andava balançando os braços,
queria que o riacho fosse um rio,
que o rio fosse uma torrente
e que essa poça fosse o mar.

Quando a criança era criança,
não sabia que era criança,
tudo lhe parecia ter alma,
e todas as almas eram uma.

Quando a criança era criança,
não tinha opinião a respeito de nada,
não tinha nenhum costume,
sentava-se sempre de pernas cruzadas,
saía correndo,
tinha um redemoinho no cabelo
e não fazia poses na hora da fotografia.

Quando a criança era uma criança
era a época destas perguntas:
Por que eu sou eu e não você?
Por que estou aqui, e por que não lá?
Quando foi que o tempo
começou, e onde é que o espaço termina?
Um lugar na vida sob o sol não é apenas um sonho?
Aquilo que eu vejo e ouço e cheiro
não é só a aparência de um mundo diante de um mundo?
Existe de fato o Mal e as pessoas
que são realmente más?
Como pode ser que eu, que sou eu,
antes de ser eu mesmo não era eu,
e que algum dia, eu, que sou eu,
não serei mais quem eu sou?

Quando uma criança era uma criança,
Mastigava espinafre, ervilhas, bolinhos de arroz, e couve-flor cozida,
e comia tudo isto não somente porque precisava comer.
Quando uma criança era uma criança,
Uma vez acordou numa cama estranha,
e agora faz isso de novo e de novo.
Muitas pessoas, então, pareciam lindas
e agora só algumas parecem, com alguma sorte.
Visualizava uma clara imagem do Paraíso,
e agora no máximo consegue só imaginá-lo,
não podia conceber o vazio absoluto,
que hoje estremece no seu pensamento.

Quando uma criança era uma criança,
brincava com entusiasmo,
e agora tem tanta excitação como tinha,
porém só quando pensa em trabalho.

Quando uma criança era uma criança,
Era suficiente comer uma maçã, uma laranja, pão,
E agora é a mesma coisa.

Quando uma criança era criança,
amoras enchiam sua mão como somente as amoras conseguem,
e também fazem agora,
Avelãs frescas machucavam sua língua,
parecido com o que fazem agora,
tinha, em cada cume de montanha,
a busca por uma montanha ainda mais alta,e em cada cidade,
a busca por uma cidade ainda maior,
e ainda é assim,
alcançava cerejas nos galhos mais altos das árvores
como, com algum orgulho, ainda consegue fazer hoje,
tinha uma timidez na frente de estranhos,
como ainda tem.
Esperava a primeira neve,
Como ainda espera até agora.

Quando a criança era criança,
Arremessou um bastão como se fosse uma lança contra uma árvore,
E ela ainda está lá, chacoalhando, até hoje.